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O Problema do Acaso



por Edgard Leite (diretor do Instituto Realitas) @edgardleiteneto


Muitos historiadores consideram como fato histórico apenas o que pode ser entendido dentro de um processo continuado.


Pensa-se nos fatos como inseridos em uma sucessão de eventos encadeados, ou paralelos.


Cuja origem está em outros processos e o fim em outros eventos, concatenados e, principalmente, documentáveis.


Não se considera, como discutível ou considerável, eventos desenraizados, supostamente descolados de qualquer razão observável.


Os eventos ocasionais, da fortuna, diria Maquiavel, do acaso, são pontos isolados. Não parecem ocorrer em função de qualquer dinâmica conhecida. São de fonte desconhecida.

E, de resto, não podem ser considerados porque sua origem não atende a nada documentável, ou a uma documentação que possa ser inserida na cadeia de eventos mais gerais. Ou em séries documentais.


A sua desimportância analítica é compreensível.


Mas, na verdade, tudo aquilo que parece ser “processo continuado”, nada mais é que fruto de pequenos eventos isolados.


Inseridos, sincronizados, de alguma maneira, com redes maiores de significado.


Quando se discute a participação dos alemães na II Guerra Mundial, por exemplo, tudo é considerado como um conjunto de eventos constituído por atos individuais, concatenados.

Articulados, em sua maioria, na crença, então assumida por muitos, de fazer emergir a Alemanha como potência militar hegemônica.


É claro que, se pudéssemos verificar todos os atos realizados por todas as pessoas da Alemanha nessa direção, apenas no período 1939-1945, se observaria que nem sempre esses movimentos são no sentido da realização de tal objetivo.


Digo num período específico porque, na verdade, não haveria como dimensionar todos os atos da cadeia de sentidos, já que a raiz desses encadeamentos estaria, certamente, na pré-história.


Mas nem todos os movimentos conjugados realizados, porque há muitos, o foram no sentido de fortalecer a Alemanha. Por isso disse “em sua maioria”.


Apenas se supõe, estatisticamente, que “o Partido Nazista estabeleceu hegemonia sobre as instituições e as mentalidades na Alemanha e levou a sociedade à guerra”.


Mas isso é estatístico, na verdade.


Não se considera o quanto de resistência ocorreu. Não em movimentos específicos, já conhecidos, como a resistência da antiga nobreza militar ou de integrantes cooptados de partidos perseguidos.


Mas em termos de ações menores cotidianas, sem maiores significações coletivas, ou implicações pessoais, mas significativas em termos do enfraquecimento contínuo da máquina de guerra ou da moral militar.


Um desânimo diante de uma notícia ou um momento de contrariedade frente a uma ordem, por exemplo. Decisões que implicavam em dúvidas. Nenhum ato humano é desprovido de hesitações.


Mas, principalmente, não se dimensiona o poder extraordinário do acaso.


Sabe-se, por exemplo, que havia resistência e conspiração militar dentro do Reich. Desde o princípio do governo de Hitler.


Sabe-se que entre diversas tentativas, pelo menos dois atentados reais contra Hitler foram, de fato, realizados por esses conspiradores.


O primeiro em 1943, quando uma bomba foi colocada no no seu avião. Esta, no entanto, não explodiu. E a segunda, em 1944, quando uma bomba foi detonada na “Toca do Lobo”, o quartel-general secreto de Hitler.


Como se sabe, esta última não matou Hitler porque, culminando diversos acontecimentos adversos, o Coronel Heinz Brandt notou a pasta onde estava o explosivo, que estava ao lado do ditador, e a colocou atrás de uma prancha de carvalho que sustentava a mesa.


Não para proteger Hitler, pois não sabia que ali havia uma bomba, mas apenas porque atrapalhava a sua movimentação. A dele, Brandt.


A prancha serviu de escudo eficiente. A bomba explodiu, matou os que estavam ao seu lado, inclusive Brandt, que não resistiu aos ferimentos, mas a madeira protegeu Hitler.


Esse acontecimento, absolutamente inusitado, não é considerado, pelos historiadores, relevante em qualquer circunstância. E há sempre quem diga que, a ser bem sucedido, o atentado “não teria mudado o rumo dos acontecimentos”, pois “Churchill e Roosevelt não fariam um acordo separado com o novo governo, por tais e tais razões”, e etc.


Isto é difícil de se dizer, na verdade, pois o atentado não foi bem sucedido. Então não se pode saber. Qualquer coisa, por fantasia, pode ser dita, inclusive que a guerra teria o mesmo desenvolvimento.


Mas a questão não está no que não ocorreu. Mas no inusitado do que ocorreu. O acaso de um coronel se incomodar com uma pasta e mudá-la de lugar determinou o que somos.


Esse acaso, a se-lo, é tão relevante quanto a batalha de Berlim. Pois a guerra só acabou, na Europa, quando Hitler, que sobreviveu a inúmeras tentativas de assassinato, suicidou-se em seu bunker. Ou, mais precisamente, foi tido como morto.


O fracasso do atentado de 1944 condicionou um processo no qual estamos, até hoje, inseridos.


O evento ocasional, o acidente, o acaso, o extraordinário é, de fato, absolutamente determinante.


Heráclito, na antiguidade, percebeu isso, quando afirmou que "o extraordinário é a morada do homem”. A questão é: o que é o extraordinário? O acaso é acaso?


Não discutir, ou não considerar, o acaso, é, apenas, não querer ver o profundo mistério da história humana.


Tudo que ocorre, de fato, repousa no enigma do extraordinário.

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