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Fílon de Alexandria (parte 2)

por Edgard Leite




Fílon e a universalidade do judaísmo.


Fílon dialogava com uma perspectiva filosófica helenística usualmente denominada, atualmente, de médio platonismo. O médio platonismo era uma tradição caracterizada pela utilização eclética de elementos platônicos (notadamente sua ética e teologia), estóicos (principalmente seus métodos alegóricos) e pitagóricos.

Tal perspectiva tinha grande interesse em temas teológicos, notadamente o entendimento da divindade transcendental, e pretendia a reconstrução de uma mensagem platônica original.

As intenções de Fílon sempre foram tradutoras. Isto é, ele pretendia, através de tal terminologia filosófica, tornar compreensíveis, àqueles que eram mais ou menos íntimos do universo filosófico helenístico, os elementos centrais do pensamento bíblico, sua essência teológica mais íntima.

Fílon certa vez, discutiu a miraculosa tradução da Bíblia hebraica para o grego, dita “dos 70”, realizada em Alexandria, séculos antes de seu nascimento. Tal tradução era considerada como a origem dos textos bíblicos em grego, os quais os judeus egípcios consideravam sagrados. Versões posteriores dessas traduções constituiriam, depois, a chamada Septuaginta, ou “versão dos 70”.

Fílon atribuiu aos tradutores, do hebraico para o grego, uma inspiração profética, pois traduziram o texto sagrado tanto na perspectiva literal, palavra a palavra, quanto na de sentido (Mos II:40).

Fílon provavelmente assim também entendia o seu trabalho. A operação tradutora da revelação bíblica para a filosofia grega que realizava estava repleta de experiência profética, pois traduzia eventos e problemas para o universo conceitual da Filosofia, tanto na perspectiva literal quanto na de sentido.

Assim, Fílon considerou que a tradição judaica continha uma mensagem universal. E entendendo que tal universalidade implicava a universalidade das recepções, parecia-lhe claro que o ecletismo de seu tempo tornava possível atestar a singular convergência entre o que estava contido na Bíblia e todo e qualquer pensamento humano que tivesse como objetivo alcançar verdades sobre Deus.

Antes que Paulo de Tarso pensasse na universalidade da mensagem bíblica, Fílon a atestava e confirmava. O que parece integrá-lo em um movimento mais amplo, que deriva do profetismo, e é coerente com a própria ideia do monoteísmo, de que o espírito que move o povo judeu deve realizar-se para além dos limites étnicos.

Assinala Fílon que “a santidade de nossa legislação tem sido fonte de maravilha não somente aos judeus, mas também a todas as nações” (Mos. II: 25) e “eu acredito que cada nação deveria abandonar seus caminhos próprios (…) e voltar-se para honrar nossas leis, apenas. Pois quando o brilho de sua luz é acompanhada pela prosperidade nacional isso irá escurecer a luz de outros, assim como o sol nascente escurece as estrelas” (Mos. II:44)


A obra de Fílon.

O corpus filônico pode ser dividido em três partes: textos exegéticos, textos históricos e apologéticos e textos filosóficos.

A maior parte de sua obra sobrevivente contém conteúdo exegético e pode ser dividida em três comentários sobre a Torá.

O primeiro é denominado Alegoria da Lei, constituído de diversos comentários sobre o Livro do Genesis. De uma forma geral, nesse material ele desenvolve um método de comentário alegórico, em parte fundado em tradições midráshicas da Judéia, em parte em abordagens moralistas gregas.

O segundo é conhecido, de forma convencional, como Exposição da Lei e contém textos sobre temas ou personagens bíblicos. Num dos textos que constitui este comentário, De praemiis et poenis, Fílon afirma que o Pentateuco, a Torá, pode ser dividido em três partes:

Inicialmente, uma seção cosmológica, que trata da criação do mundo e que permite o entendimento de que a Lei judaica está em harmonia com o universo. Em seguida uma seção genealógica-histórica, na qual estabelece que a vida dos homens virtuosos representa a Lei corporificada, que serve como paradigma para as Leis que serão depois reveladas. E, por fim, uma terceira parte, onde a legislação, os dez mandamentos e outras leis, emergem.

Nesse sentido, Fílon acompanhava uma preocupação que era típica de certa literatura do Segundo Templo: a de que existia uma correspondência entre os eventos legais do Sinai e a ordem essencial do mundo criado.

Tal entendimento permitiu que fosse aberto um caminho, numa perspectiva filosófica, para uma correspondência entre a lei de Moisés e a tese da lei natural, o que valorizava a racionalidade do corpo jurídico judaico.

Traduzindo o assunto para perspectivas narrativas gregas, Fílon aparenta entender que o Pentateuco não deve ser considerado como análogo aos poemas homéricos, que eram essencialmente míticos, mas sim aos textos didáticos gregos. Embora, ao contrário destes últimos, comportasse também uma interpretação alegórica, tal como nos textos homéricos, basicamente uma alegoria ética.

Segundo Filón:

“quando se lê “Deus plantou um jardim no Éden (…) alguém se pergunta: para quê? (…) já que Adão (…) de lá saiu (…). Deus, Ele não tem necessidade de comida ou de qualquer outra coisa (…) assim, devemos nos voltar para a alegoria (…) [e a Bíblia] nos dá os caminhos para o uso desse método. Pois eles dizem que no jardim existem árvores que não nos são familiar, mas árvores da Vida, da Imortalidade, do Conhecimento, da Apreensão, do Entendimento, da concepção do bem e do mal” (Plant. 32-36).

Fílon aqui acompanhava a perspectiva de interpretação alegórica que os gregos utilizavam, principalmente na leitura da Ilíada e da Odisséia.

Tal paradoxo, ou seja, um texto que era ao mesmo passível e não passível de alegoria, traduzia, diante dos gregos, a difícil questão se os textos bíblicos seriam também míticos, como os textos de Homero.

Tal questão, provavelmente, delimitava, no olhar grego, os limites da sua razão em entender a profundidade da Bíblia e o seu mistério essencial. Experiência que também era presente na alma do leitor judeu. Traduzia-se assim também o mistério da experiência literária bíblica. Utilizando-se dos paradoxos filosóficos.

O terceiro tipo de comentário é chamado Perguntas e Respostas sobre Genesis e Êxodo, que conhecemos hoje apenas a partir de fragmentos. Tal conjunto acompanha modelos narrativos gregos.

O contexto no qual cada texto desses foi escrito é matéria de discussão. Alguns parecem estar ligados a estudos, a serem expostos na Sinagoga, outros eram dedicados ao público gentio. Entendem os estudiosos de Fílon que esta é a mais relevante de suas produções pois seu discurso basal é a exegese bíblica e o seu pensamento emerge precisamente dessa operação.

A segunda parte, os textos históricos e apologéticos, inclui os diversos escritos ligados aos problemas de seu tempo. Entre eles o Legatio ad Gaium (Embaixada a Gaio), que dá conta do contexto e natureza de sua ida a Roma para defender os judeus dos diversos ataques que sofriam, tanto dos gregos quanto do Estado. Entre as obras apologéticas estão incluídas o De Vita Mosis (A Vida de Moisés) e sua analise sobre a seita dos Therapeutae, então existente no Egito, o De vita contemplativa (Sobre a vida contemplativa).

A terceira parte é constituída de obras de filosofia grega. Pouca coisa disto sobreviveu ao tempo. Atualmente esta parte é constituída por dois tratados, Quod omnis probus liber sit (Todo bom homem é livre), construído sobre padrões estóicos, e De aeternitate mundi (Sobre a eternidade do mundo). Fazem parte dela também dois diálogos, preservados em cópias armênias, De animalibus (Sobre os animais) e De providentia (Sobre a Providência). Nestes textos Fílon raramente ou nunca se remete a fontes bíblicas.


Logos, Sophia, Mística.

Fílon, em sua obra, discutiu a natureza de Deus e de seus atributos. Tal discussão lhe pareceu fundamental para explicar a natureza da relação entre Deus, a natureza e os homens e pensá-la no âmbito do pensamento grego.

Particular importância deu aos conceitos de Logos (Palavra) e Sophia (Sabedoria). Pois, assim entendeu, é pela consideração de semelhantes atributos que o ser se entende como ser diante de Deus e que é possível o entendimento ou experiência de sua fonte ou origem.

A discussão sobre o sentido desses conceitos em sua obra é contínua. Cabe-nos, no momento, apontar que, para Fílon, o Logos, a Palavra, “é um adesivo e elo que preenche todas as coisas com Seu ser” (Her. 188). Sua relação, enquanto atributo, com Deus, pode ser compreendida na medida em que se considera que Deus “sustenta o universo e o mantém firme e seguro a partir do Logos”, isto é, Sua Palavra (Somn I:241). É tanto bondade e poder criativo quanto soberania e poder regente.

Em outra passagem Fílon designa o Logos como “o primogênito”, ancião entre os anjos, seu governante:

“O Logos divino” explica Fílon, “(…) não pode ser representado de forma visível (…) é Ele mesmo a Imagem de Deus, superior a todos os seres intelectualmente percebidos, colocado próximo sem nenhuma distância ao Único Uno verdadeiramente existente” (Fug. 101) (Opif 139).

O Logos, a Palavra, o elemento atuante na fala de Deus, “e Deus disse”, é uma projeção intermediária entre o Absoluto e o Mundo, algo que torna possível essa interface. Na sentença bíblica: “e disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança” (Gn 1:26), entende Fílon que está descrito o Logos:

“Porque nada mortal pode ser feito à semelhança do Uno maior e Pai do Universo, mas somente à desse Deus secundário, que é seu Logos (…) e assim é certo que a parte racional da alma humana deva ser formada como uma impressão do Logos divino, na medida em que o pré-Logos Deus é superior a toda natureza racional. Mas Aquele que está acima do Logos e existe no melhor e em uma forma especial, que coisa pode vir a existir que possa ser corretamente sua semelhança? No entanto, a Escritura deseja também mostrar que Deus reconhece os homens virtuosos e decentes porque eles têm algum parentesco com Seu Logos, do qual a mente humana é semelhança e imagem” (QG 62)

O Logos é assim um atributo necessário, criador deste mundo, emanação de Deus, mas que contém em si um elemento próprio do divino que está de alguma forma impresso na alma humana.

Assim, explica Fílon, quando Agar, desesperada, fugiu de Saraí, um anjo, que Fílon explica ser “o divino Logos” expressou a voz da razão: “o Senhor a ouviu em seu sofrimento” (Gn 16:11) e a encorajou a voltar à casa de sua senhora (Fug. 5). Há uma dimensão no Logos divino que fala dentro da alma humana. E assim Deus se comunica com o ser.

Fílon sustenta que “Todo homem, no que diz respeito à sua mente, é ligado à razão divina, tendo surgido como cópia, ou fragmento ou raio dessa natureza abençoada”(Opif. 146).

Em outros momentos, Fílon acrescenta, ao Logos, o atributo de Sophia, a Sabedoria, tema também presente na Bíblia, explicitamente em Provérbios: “O Senhor me criou como o princípio de seu caminho, antes das suas obras mais antigas; fui formada desde a eternidade, desde o princípio, antes de existir a terra” (Pr 8:22-23).

Na literatura helenística bíblica o tema também está presente: “Ó Deus dos nossos antepassados e Senhor misericordioso, por meio da tua palavra criaste todas as coisas. Por meio da tua sabedoria formaste o ser humano” (Sb 9 :1-2)

Assim, afirma Fílon que Moisés “é filho de pais incorruptíveis, e totalmente livre de manchas, seu pai é Deus, que é o Pai de todos, e sua mãe é a Sabedoria, através da qual todo Universo veio a existir” (Fug. 109). E, em outra oportunidade, “devemos corretamente dizer e sem dúvidas que o Arquiteto que fez esse universo era ao mesmo tempo o Pai de tudo que nasceu, enquanto que sua mãe era o conhecimento possuído pelo seu Criador” (Ebr. 30-1).

Tais atributos divinos seriam elementos do Deus único, representações literárias, e não, como poderiam pensar os gregos, que entendiam obras de Deus como deuses, seres dotados de autonomia (Spec. 1: 13-20).

Além do mais, a consideração de tal dinâmica metafísica propiciava o entendimento da importância de impressão de algo que ecoava o divino na alma humana e o entendimento da potência que nela habita.

Em certa oportunidade, Fílon discutiu sobre o rio primordial que flui do Éden e o irriga. Este se divide em quatro rios (Gn 2:10-14). Para ele era claro que esses quatro rios representavam as quatro virtudes: prudência, temperança, coragem, justiça. Tal denominação, platônica, era uma tradução, evidentemente. Tratava-se de explanar, em grego, sobre a presença, nos textos bíblicos, de uma formulação pré ou proto filosófica de profunda significação. Que Platão, na perspectiva filônica, acabou por aceitar ou por depreender de forma independente.

“O maior rio do qual os quatro são efluxos, é a virtude genérica, o qual chamamos ‘bondade’ (…) a virtude genérica principia no Eden, na Sabedoria de Deus, que é cheia de alegria, e brilho, e exultação, glorificando e orgulhando-se apenas em Deus seu Pai(Leg.I:65).

As virtudes originam-se portanto na Sabedoria. A vivência dos atributos, através de suas inflexões, é fundamental para fazer o ser viver a Sabedoria, impressa em sua alma, e depreender, ou encontrar, seu Criador.

Fílon possuía profunda admiração pela vida contemplativa, por uma existência na qual o ser realizasse o espírito e abandonasse aos poucos os valores materiais, corpóreos. “Olhar através das palavras”, “contemplar as belezas maravilhosas dos conceitos” “discernir o interior e oculto através do exterior e visível” (Contempl. 78).

Isto é, todo o procedimento intelectual e filosófico tinha por objetivo sua própria transcendência. Quando se discutia filosofia se admirava a razão, o Logos ou a Sabedoria que estava nela contida e penetrava-se assim em algo que era maior que o maior dos pensamentos humanos e que repousava no “interior e oculto” do “exterior e visível” e que estava “além das palavras”.

A mística de Fílon, exprimia-se, ao molde platônico, na ideia de que o corpo era o espaço de perda de conhecimento e de ignorância, e que a ruptura com a carne, ou com as ilusões e dores da existência corpórea, abria caminho para a realização do ser.

Assim: “o limite da felicidade é a presença de Deus, que enche completamente a alma com Sua luz incorpórea e eterna” (QG IV:4). E explicou o assunto, comparando a jornada da mente rumo ao transcendente com o movimento do Sumo-sacerdote no Templo de Jerusalém, que se move em direção ao “sagrado dos sagrados” do Templo. Postulava, assim, uma alegorização do “sagrado dos sagrados” entendendo-o como um espaço íntimo do ser, no qual estava presente Deus:

“Quando a mente é dominada pelo amor do Divino, quando ela força seus poderes para alcançar o santuário mais íntimo, quando coloca todo esforço e ardor em sua marcha para diante, sob a força divina dominante, esquece tudo mais, esquece-se e fixa seus pensamentos e memórias sobre Ele apenas” (Somn II: 232).

E isso pode ser alcançado pela paradoxal humildade absoluta que se alcança pelo conhecimento mais elevado:

“Aquele que se compreendeu completamente, desapegando-se profundamente de si mesmo, tendo, para isto, entendido o nada em todos os aspectos do ser criado. E o homem que se desapegou de si mesmo, começa a conhecer Aquele que É” (Somn I: 60).

Tal experiência mística, redentora, é descrita assim:

“A mente, o soberano elemento da alma, para a qual a palavra “imagem” é usada (…)” quando “abre por artes e ciências muitas direções” ela ascende e contempla “a atmosfera e todas as suas fases, ela é levada ainda mais para o éter e o circuito do céu, e gira junto com as danças dos planetas e das estrelas fixas, de acordo com as leis da música perfeita, seguindo esse amor da sabedoria que guia seus passos. E assim, levando seu olhar para além de toda a substância discernível pelos sentidos, chega a um ponto em que ele alcança o mundo inteligível, e ao vislumbrar nesse mundo visões de beleza deslumbrante, (…) é tomada por uma intoxicação sóbria, (…) e é inspirada, possuída (…) por um desejo mais nobre. Atravessando para o arco superior das coisas perceptíveis à mente, segue seu caminho para o Grande Rei Ele mesmo. E, em meio à sua ânsia de vê-Lo, raios puros e não temperados de luz concentrada fluem como uma torrente, de modo que por seus brilhos o olho do entendimento fica deslumbrado” (Opif. 69-71).

Não é de menor importância esse esforço tradutor de Fílon, que pretendia demonstrar o significado do projeto redentor humano contido na Bíblia, em termos do pensamento helenístico e o tornava, dessa maneira, mais ou menos compreensível pelos gregos. Do ponto de vista do espírito humano demonstrava seu significado universal e convidava a sua experiência sublime.


(Continua)

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