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A superioridade das palavras sobre o pão, segundo Lydia Chukovskaya

por Edgard Leite, Diretor do Instituto Realitas



Os marxistas do século XIX estabeleceram a ideia de que a consciência dos homens era determinada pelas suas condições materiais.


Isto é, tudo o que pensávamos vinha do mundo. Não de algum outro lugar que estivesse fora do mundo, como o invisível ou o espiritual. Mas deste mundo.


Isso queria dizer que se nascêssemos pobres nossa consciência seria de uma pessoa pobre, se ricos, de uma pessoa rica.


Esse determinismo estava na origem do conceito de classe, que Marx, alias, nunca procurou definir.


Mesmo porque aqueles que observam a vida com cuidado percebem que mesmo numa sociedade de castas existem sempre disfunções e dissidências que desafiam as condições supostamente dadas pela vida.


Mas essa crença também significava que, à maneira iluminista, acreditavam os marxistas que se se educassem as pessoas numa determinada direção elas se tornariam assim, tal como foram educadas.


Donde o poder extraordinário dado ao sistema educacional pelos marxistas. Não se acreditava em nada que fosse determinante para além das condições objetivas da vida.


A subjetividade era secundária. Assim, afirmou Lenin que “o materialismo põe o ser em primeiro plano, e o pensar em segundo”.


De maneira nenhuma se acreditava, portanto, que as personalidades particulares eram capazes de determinar algo. Ou que algo que estivesse fora do visível, poderia ser relevante para explicar o ser.


Assim a ditadura de afirmação do visível, do aparente, e a absoluta intolerância para o particular, o singular e o subjetivo, caracterizavam a visão do regime sobre a sociedade.


Ao longo dos anos 20, 30, 40 e 50, do século XX, milhões de pessoas foram mortas na União Soviética. Não apenas pela guerra civil, pelos processos de transformação econômica forçados, pela II Guerra Mundial.


Mas também por expressar conteúdos de pensamento divergentes. Por basear suas consciências em ideias próprias e tomar decisões a partir delas. Porque isso desafiava a determinação do social


O meio artístico e intelectual foi duramente atingido. Mas pessoas comuns também. Era alvo qualquer um que expressasse ideias tidas como particulares. Próprias. Autênticas.


“O pensar é secundário” queria dizer que o aparente era soberano e se deveria derivar o pensar da imagem.


Assim, a criatividade, o pensamento aleatório, o livre-pensar, foram considerados não apenas inimigos, mas dissonâncias.


Portanto, tendo sido superada a fase de simplesmente matar, a partir dos anos 60, os dissidentes começaram a ser enviados para hospitais psiquiátricos.


Depois da morte de Stálin (1953) ocorreu, na União Soviética, um ligeiro movimento de abertura política.


Os crimes do estalinismo foram denunciados, em 1956, pelo novo líder do país, Nikita Kruschev, no seu célebre Discurso Secreto no XX Congresso do Partido Comunista.

Nessa fase emergiram alguns escritores e artistas de peso, que se tornaram líderes da dissidência.


Já que surgiram, na medida em que artistas, exatamente daquele universo da subjetividade, da inspiração. Onde repousam os elementos capazes de fundamentar as decisões humanas e de engendrar transformações.


Três autores podem ser destacados, nesse momento. O primeiro deles foi Boris Pasternack (1890-1960).


Pasternack escreveu um livro particularmente assustador ao regime: Doutor Jivago (1957), no qual afirmou a grandeza da capacidade humana de tomar decisões e a profundidade e importância dos elos sentimentais. E sustentou que o regime que nega esse papel da subjetividade leva a desgraça e não a libertação aos seres humanos.


O segundo foi Aleksandr Solzhenitsyn (1918-2008).


Solzhenitsyn, naquele momento, notabilizou-se pelo seu livro Um dia na vida de Ivan Denisovich (1962). Um relato das prisões políticas do regime estalinista. Ali, também apontou que o ato que tornava Denisovich, prisioneiro sem nome, apenas reconhecido pelo seu número, um humano, era sua capacidade de decidir. Sua subjetividade.


O terceiro foi Lydia Chukovskaya (1907-1996).


Chukovskaya escreveu um livro notável: Sofia Petrovna (1965). Um impressionante relato do período dos expurgos políticos, nos anos 30.


Em 1964, com a queda de Nikita Kruwchev, o regime retornou ao seu perfil ideológico violento. Em 1968, quando estava claro que a opressão corriqueira estava novamente em curso, Chukovskaya escreveu uma corajosa carta ao periódico Isvestia, onde fazia uma crítica crucial aos pressupostos objetivistas do marxismo instalado:


"As palavras são perseguidas... Eu diria que precisamos tanto delas quanto precisamos de pão. E por causa de sua verdade que penetra, precisamos mais delas do que do pão”


Numa resposta a Lenin, portanto, e a todo o regime, Chukovskaya afirmava que o pensamento é essencial. Que a subjetividade é a chave da existência. E nela reside o que torna o humano, humano.


Em todos esses autores o ser humano, mesmo colocado numa situação de extrema miséria e no limiar da sua condição de humano, somente no seu interior, na sua alma, naquilo que não pode ser alcançado pelo mundo, podia encontrar sua humanidade.


A União Soviética, na sua insistência cega em suprimir o pensamento, o subjetivo, comprovou o imenso poder do espírito.


O desaparecimento melancólico do regime, em 1991-1993, comprovou o erro das assertivas fundadores daquele sistema.


Nada pode destruir a essência humana, aquela que não depende das coisas do mundo e que torna o ser, um ser.


E mesmo com toda opressão, crime e violência, basta que um escritor conte que, no fundo de uma prisão, totalmente controlada, onde sequer há nome, mas apenas número, um prisioneiro foi capaz de decidir se deveria botar mais ou menos sal na comida.


Basta essa constatação para que a humanidade desperte e seja capaz de desafiar um regime com o maior exercito do mundo e com milhares de armas nucleares.


E é nessa subjetividade que está o mistério do ser. E não na transitoriedade do mundo.




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